Como a série de maior sucesso da Netflix utiliza obras de arte
para fortalecer sua narrativa
A arte, especialmente aquela produzida no início do século XIX, era uma ferramenta para ostentar herança familiar, status e valores. Em raras ocasiões, filmes e séries usam a arte como elemento essencial para contar histórias, mas a produção de Bridgerton não só utilizou esse recurso intensamente como fez releituras, adaptações e criações de obras de arte para moldar e fortalecer personagens.
A arte em Bridgerton recebe uma voz para falar. Entre pinturas, cerâmicas, esculturas, utensílios, mobiliários e outros itens dos movimentos neoclássico, barroco e rococó, a arte participa ativamente da narrativa da série.
Imagem © Netflix, Inc.
Ambientada na era da Regência em Londres, em 1813, a série é baseada em uma coletânea de nove best sellers de Julia Quinn e retratam a nobre família Bridgerton, composta por uma viúva e seus oito filhos. Cada livro acompanha um dos irmãos na descoberta de seu grande amor.
As tramas das duas temporadas giram em torno de histórias de amor, disputas entre famílias, dotes, heranças, bailes e espartilhos. Mas o que vem chamando a atenção da crítica é a produção artística da série: fotografia, cenografia e figurinos. Aqui, falaremos das obras de arte que têm a ver com duas questões da narrativa muito presentes em Bridgerton: relações raciais e de gênero.
Relações raciais
Produzida por Shonda Rhimes, roteirista negra e uma das principais cineastas do mundo, a série traz as pessoas de pele negra para cúpula da sociedade - marca das produções de Shonda, que sempre coloca personagens negros em posição de destaque. Uma delas, a Rainha Charlotte, é baseada na rainha da Inglaterra nascida na Alemanha, Charlotte de Mecklenburg-Strelitz (1744-1818), que é muitas vezes conhecida como a primeira rainha negra da Inglaterra. Interpretada por Golda Rosheuvel, essa personagem merecia uma série só pra ela - e li rumores de que haverá!
Rainha Charlotte interpretada por Golda Rosheuvel. Imagem © Netflix, Inc.
A questão racial é poucas vezes trazida como um debate e mas sim como um “revisionismo histórico”, como se os autores dessem a esses personagens a oportunidade de serem heróis e os protagonistas, sem que a cor da pele seja imperativa.
Relações de gênero
Já a questão de gênero é claramente debatida. O papel da mulher na sociedade pode ser considerado o cerne da obra, já que toda a trama acontece na “temporada de debutantes”, a época em que as mulheres (leia-se adolescentes) começam a ser cortejadas pelos nobres para um possível casamento.
Daphne Bridgerton - primeira temporada. Imagem © Netflix, Inc.
Há também as jovens que não querem se casar, aquelas que gostariam de estudar, as mulheres empreendedoras, as artistas sedutoras, as prostitutas e a pérola da trama: Lady Whistledown, uma escritora anônima que fofoca e critica sobre tudo o que acontece durante a temporada de cortejos. Dito isso, vamos em frente.
"Juan de Pareja"
No episódio três da primeira temporada, Rainha Charlotte surge em frente a um quadro com uma característica muito peculiar. Atrás dela, tem a referência de quadro “Juan de Pareja” do pintor espanhol Diego Velázquez. Na História, Pareja era um assistente mestiço e escravizado no ateliê de Diego Velázquez. Na série, a obra foi alterada dando lugar a um aristocrata negro, que supostamente representa um dos ancestrais da rainha.
Rainha Charlotte em frente ao quadro alterado. Imagem © Netflix, Inc.
"Juan de Pareja", 1650, Diego Velázquez. Óleo sobre tela. Foto: Met Museum
Diego Velázquez (1599 - 1660) foi um pintor espanhol barroco e principal retratista da corte do rei Filipe IV de Espanha.
“Vênus e suas Ninfas”
Eloise Bridgerton e Penelope Featherington discutem a objetificação feminina enquanto observam a pintura "Vênus e suas Ninfas" de Louis Jean François Lagrenée. Eloise, feminista que tem pavor do mercado casamenteiro, comenta “É maçante. Como todas essas pinturas, foi feita por um homem que vê as mulheres como decoração, como vasos humanos.”
Eloise Bridgerton e Penelope Featherington observam Vênus e suas Ninfas. Imagem © Netflix, Inc.
"Vênus e suas Ninfas", 1776, Louis Jean François Lagrenée. Óleo sobre tela. Foto: Wikiart.
Louis Jean François Lagrenée (1725 - 1805) foi um pintor do rococó francês, membro da Académie Royale de pintura e escultura, composta pelos artistas mais relevantes da época.
"Retrato de Madeleine"
No episódio sete da segunda temporada, Benedict está em uma festa onde aparecem artistas desenhando uma modelo negra vestida exatamente como a modelo de "Retrato de Madeleine" de Marie Guillemine Benoist.
Cena da festa onde aparece a modelo de "Retrato de Madeleine" de Marie Guillemine Benoist. Imagem © Netflix, Inc.
"Retrato de Madeleine", 1800, de Marie Guillemine Benoist , óleo sobre tela.
A inclusão dessa obra na série também se destaca pois a representação de negros em retratos durante esse período é raríssima. Geralmente, homens e mulheres negras eram usados como acessórios para os retratos de ricos patronos brancos. Poucas obras desta época subvertem essa expectativa e "Retrato de Madeleine" é uma delas. Este quadro está exposto no Louvre desde 1818 e acredita-se que o quadro é uma crítica discreta à escravidão nas colônias francesas.
Se na História, é provável que Madeleine fosse uma escrava sem autonomia e obrigada a posar para o retrato, em Bridgerton ela parece ser uma mulher livre, optando por posar. Pode-se especular que ela seja uma estudante, como a personagem de Tessa, que trabalha como modelo para frequentar a escola de arte. Vou falar mais sobre Tessa a seguir.
Imagem © Netflix, Inc.
Vale pontuar que esta cena (e este episódio) foi dirigida por uma mulher negra, Cheryl Dunye. A diretora é especialista em dissecar raça, gênero e sexualidade em seu trabalho, e sua influência certamente pode ser sentida aqui.
Marie Guillelmine Bernoist (1768 - 1826) foi uma pintora francesa neoclássica histórica e de gênero. Viveu em uma época em que poucas mulheres tinham acesso ao estudo e à produção de arte. Suas obras eram frequentemente questionadas, já que a qualidade era grande ao ponto de “jamais terem sido executadas por uma mulher”.
Aulas de desenho com modelos nuas
Na primeira temporada, Benedict começa frequentar os saraus e o estúdio de artes de Henry Granville, seu amigo pintor. Nessas cenas aparecem modelos nuas além de homens e mulheres pintando. Provavelmente isso só aconteceria em ambientes totalmente privados, pois a nudez feminina era (era?) considerada imoral.
Imagem © Netflix, Inc.
Já na segunda temporada, Benedict adentra a Academia de Belas Artes. Todas as cenas de Benedict estudando acontecem numa aula ou numa festa com a presença das modelos nuas. Esta questão é abertamente discutida quando ele se depara com Tessa, uma das modelos com quem ele iniciará um caso amoroso, desenhando.
A próxima temporada de Bridgerton, prevista para ser lançada no primeiro trimestre de 2023, terá como protagonista Benedict Bridgerton - nosso personagem artista, ou seja, com certeza podemos esperar novas referências interessante sobe a História da Arte.
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